Professor Rosseti – Artigo

Data da publicação: 06/11/2008

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Reproduzo abaixo um artigo recente do Professor Rosseti. O mesmo é extenso e repleto de termos de “economês”, porém, tratando-se do autor, recomendo fortemente a leitura. O Professor Rosseti é um dos mais brilhantes economistas do Brasil, é professor da Fundação Dom Cabral, participa de diversos Conselhos de Administração e é o facilitador dos trabalhos de Planejamento Estratégico e construção de ambientes de Governança Corporativa de grandes empresas do país, inclusive da nossa. Como se não bastasse o seu brilhantismo nas áreas de Economia e Administração, Rosseti é também uma pessoa extremamente agradável além de exímio contador de causos e piadas, sempre com o seu forte sotaque do interior de São Paulo.

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A CRISE FINANCEIRA INTERNACIONAL:
DIMENSÕES, IMPACTOS E APRENDIZAGEM

Por José Paschoal Rossetti

As dimensões alcançadas pela economia global neste final da primeira década do século XXI não têm precedentes históricos. Tracionada por um extenso conjunto de fatores, atingiu magnitudes assustadoras. Convertidos em dólares pelo critério da paridade do poder aquisitivo, os Produtos Nacionais Brutos (PNBs), somados, totalizaram no final de 2007 US$ 65,5 trilhões, com presenças até então inusitadas de países emergentes entre as quinze maiores economias do mundo. As quinze maiores totalizam US$ 46,8 trilhões, 71,5% da economia mundial, revelando alta concentração da atividade produtiva global, por países, mas com expressiva representatividade dos emergentes (BRICs mais México, Coréia do Sul e Turquia): seus PNBs somam US$ 17,5 trilhões, 37,4% das quinze mais importantes nações industriais do mundo.

Esta expressiva participação de países emergentes entre os quinze maiores, é um dos aspectos da recente globalização das cadeias produtivas reais e financeiras. Outro aspecto é a crescente relação entre as correntes mundiais de comércio de mercadorias e serviços: em 1970, representavam 12,1% do Produto Mundial Bruto (PMB); em 1980, 13,4%; em 1990, 19,7%; em 2000, 26,0% e em 2007, 27,9%, com projeções que apontam para mais de 40% em 2020. Uma terceiro aspecto é a expressão alcançada pelos investimentos estrangeiros diretos, que cruzam fronteiras tanto para aquisição de ativos produtivos já instalados, quanto para construção de novas operações. O crescimento desses fluxos tem sido exponencial: em valores correntes, saltaram de US$ 131 bilhões anuais no período 1984-89, para US$ 1,2 trilhões entre 2000-2007, duplicando de cinco em cinco anos e aumentando sua expressão em relação ao PMB, de 1,04% para 2,71% e com crescente destinação para emergentes, de 4,1% para 26,7% no mesmo período.

Estes números traduzem as megamudanças político-ideológicas, geopolíticas e econômicas que ocorreram nos últimos cem anos. Na dimensão política, evoluímos de sistemas antagônicos e radicalmente opostos, para desradicalizações e daí para proposições de governança global. Na geopolítica, as ênfases eram a soberania e a segurança nacionais, diante da perspectiva latente de confrontações bélicas de amplitude mundial. Com os processos de abertura e de desfronteirizações, enfatizam-se hoje preocupações com a segurança global. Em sintonia com esses movimentos, a ordem econômica evoluiu da era das fronteiras fechadas e protegidas para a era da abertura, de que resultou a globalização das cadeias produtivas, reais e financeiras.

Todas estas megamudanças têm por implicações fundamentais os “colamentos” e os “efeitos-contágio”, positivos e negativos, de praticamente tudo o que ocorre no interior das economias nacionais. Não há país minimamente importante que se possa considerar “deslocado” das novas concepções político-ideológicas e das novas ordens geopolítica e econômica globais. E, obviamente, os graus de impacto dos “efeitos-contágio” são tão maiores quanto mais importantes forem as dimensões das economias em que se formam as grandes ondas de repercussão global.

É o que ocorreu agora. A crise financeira não é de pequenas dimensões nem de amplitude restrita. Os impactos variam de intensidade entre os países e entre as suas cadeias produtivas, mas são de abrangência global. A dimensão não tem precedentes: é uma brusca freada na economia mundial, que vinha crescendo (média do qüinqüênio 2003-07), 4,5% ao ano, 24,6% acumulados em cinco anos. Considerando o valor do PMB pelo critério das paridades, esta taxa corresponde a US$ 2,9 trilhões anuais, ou a R$ 16,1 trilhões em cinco anos: uma expansão que equivale a bem mais de um Brasil a cada ano ou – o que é ainda mais assustador – a bem mais de um Estados Unidos a cada cinco anos. Obviamente, uma freada nesta velocidade pode ser desastrosa, pelas desarrumações que produz.

Durante os últimos anos, na gestação desta crise, a economia global vivia uma fase exuberante. Os fatores de seu notável crescimento eram muitos e vetorialmente articulados. Listamos dez: 1. crescimento demográfico, com impactantes mudanças ambientais (74,5 milhões de habitantes a mais por ano no mundo); 2. aspirações sociais em alta, movidas pela remoção de barreiras à informação; 3. preço dos bens finais em queda, por crescentes economias de escala, nanotecnologia, eficiência das operações produtivas e importações de países emergentes de baixos custos; 4. inclusão da base das pirâmides sócio-econômicas; 5. descartabilidade de produtos, acelerada por revoluções tecnológicas (a obsolescência técnica antecipando-se à funcional); 6. liquidez alta e farta disponibilidade de crédito, embora não inteiramente lastreada; 7. investimentos de 23% do PMB, correspondentes a US$ 15,1 trilhões anuais, US$ 4,1 trilhões por dia, US$ 1,7 bilhão por hora corrida; 8. expansão do número e das dimensões das empresas em todos os negócios (de 2000 a 2007, as empresas de capital aberto em todas as bolsas de valores aumentaram de 29.300 para 46.509, a um ritmo de 9,7% ao ano, enquanto seu valor de mercado saltou de US$ 30,9 para US$ 60,8 trilhões, 14,5% ao ano; 9. abertura de mercados; e 10. vigor dos grandes países emergentes.

Mas em meio a este elenco de condições positivas, havia um conjunto também amplo de preocupações e de sinais de alerta. Listamos também dez: 1. questões ambientais (pressões sobre o capital natural, aquecimento global e exigência de novas fontes de energia, limpas e renováveis); 2. assimetrias temporais nos investimentos (lentidão das indústrias de base, face à explosão dos mercados finais); 3. altas nos preços dos insumos básicos (seja pelo descompasso procura/oferta, seja por especulação); 4. estado macroeconômico dos Estados Unidos (dívida pública de US$ 10 trilhões, déficit fiscal de US$ 480 bilhões e déficit em transações externas correntes de US$ 840 bilhões); 5. alto endividamento das famílias nos Estados Unidos, 68% com hipotecas imobiliárias, das quais 76% sob riscos preocupantes, há mais de três anos denominados de “operações subprime”; 6. temores dos impactos que eventual onda de inadimplência das operações financeiras de alto risco pudessem ter na economia norte-americana; 7. achatamento do crescimento dos Estados Unidos: 3,6% (2004); 2,9 (2005); 2,8% (2006) e 2,0% (2007); 8. alta alavancagem dos bancos, tanto nos Estados Unidos como em países da Europa Ocidental (três vezes superior aos níveis tecnicamente aceitáveis); 9. esfriamento do crescimento chinês, por restrições às super-ofertas de seus produtos nos mercados ocidentais; e 10. restrições crescentemente severas dos ambientalistas aos avanços do crescimento, bem mais vigorosos que a consciência e a prática da reciclagem.

Diante destes cenários – tanto o de exuberância, quanto o de condições adversas – projetavam-se anos menos brilhantes à frente. Não faltaram prenúncios: 1. ataques especulativos entre 1997 e 2003, produzindo crises de confiança, ainda que pontuais e localizadas; 2. fraudes e escândalos no mundo corporativo, evidenciando fragilidades em processos de governança; 3. erros de agências de avaliações de riscos e descuidos de grandes empresas de auditoria, que também abalaram a confiança dos agentes econômicos; 4. visível hipertrofia do setor financeiro, movida pela criatividade na construção de novos produtos, frutos de sofisticada e pouco amigável “engenharia bancária”.

Como ocorre com a maior parte das crises econômicas e financeiras, a gestação é longa e silenciosa; a eclosão e seus impactos são extremamente velozes e rumorosos. Em poucos dias destroem-se práticas perversas acumuladas em anos. E as conseqüências se tornam rapidamente visíveis, contaminantes e apontando para o caos. Algumas conseqüências são evitáveis e administráveis; outras são inevitáveis e de controle mais complexo; outras são incontroláveis. O grau de nocividade das listáveis em cada um deste três grupos não é igual: vão de baixos a desastrosos, estes decorrentes das conseqüências descritas como incontroláveis.

Os graus de preocupação dos agentes econômicos com as conseqüências da crise, mesmo com as evitáveis, são generalizadamente altos, especialmente dos que se encontram no topo do mundo corporativo. A prudência recomenda ajustes, mudanças comportamentais, cortes em custos, foco na robustez do caixa e revisão de objetivos, especialmente investimentos que não haviam ainda saído do papel. Ocorre que todas estas ações têm efeitos contracionistas, porque são unidirecionais. Praticamente todos as adotam, em operações que visam sobretudo a sobrevivência. E contribuem para o agravamento do estado macroeconômico da crise, não obstante ponham os ativos sob proteção, em seus restritos círculos microeconômicos.

Obviamente, as razões mais fortes das conseqüências inevitáveis têm a ver com o epicentro da crise, mas uma parte expressiva resulta das reações dos agentes econômicos à  própria crise. Esta é a razão maior de sua rápida propagação e do perigo de ela se tornar incontrolável. Se ocorrer, o descontrole resultará de crise aguda de confiança, de redução radical de expectativas e de pânico. Tendo consciência de que ele pode se instalar, as reações iniciais são agudas e ficam a um passo do desespero e do salto de todos para o fundo do precipício. E mais: há fatores que ampliam este risco, entre os quais a alta sensibilidade dos agentes econômicos à informação dos efeitos “trágicos” desencadeados, a defasagem de efeito de medidas governamentais de salvamento, a busca pretensamente racional por “portos seguros” e os efeitos multiplicadores da crise de liquidez decorrente da ida furiosa para estes portos. Rapidamente, no interior de cada economia, a crise migra do setor financeiro para o real, de ambos para o das transações internacionais e de todos, finalmente, para o governo, o último baluarte. Soam então os sinos do apocalipse.

Durante curto espaço de tempo, pelos efeitos em bola de neve destes processos, o mundo dos negócios e as condições de sobrevivência de todos ficam entre o reordenamento e o desmoronamento. Mas aí podem entrar em cena os fatores endógenos que sustentam os sistemas em equilíbrio homeostático. Se o tempo de duração dos fatores internos e externos de ruptura alongar-se ou se a intensidade desses fatores for exageradamente alta, o equilíbrio se rompe e o sistema desmorona. Mas, se ocorrerem no âmbito macro, medidas compensatórias das micro rupturas, a integridade e os fundamentos do equilíbrio sistêmico se mantêm. As forças entrópicas destrutivas são mitigadas e, pouco a pouco, anuladas.

O reordenamento então prevalece sobre o desmoronamento.

É o que parece ter ocorrido com esta crise financeira internacional. Entre os mecanismos compensatórios das micro rupturas, os mais eficazes foram a cúpula global para acompanhamento e controle dos efeitos inevitáveis, bem como a rápida adoção de medidas anti-depressivas, o quanto possível compatíveis com as dimensões da crise. Não se jogaram bolinhas de pingue-pongue em pinos de boliche. Ao erro de deixar à própria sorte um dos mais tradicionais bancos dos Estados Unidos, sucederam-se medidas de peso, rápidas e eficazes, se não para debelar todos os efeitos da crise, pelo menos para evitar o pior – o generalizado estado de descontrole, em que todos buscam os mesmos “salvamentos” e todos naufragam juntos.

Em síntese: não há como admitir que a atual crise financeira internacional não terá conseqüências. Mas a lógica irracional das manadas está sob controle. Pode ainda desencadear-se, mas com o passar dos dias é cada vez menos provável que ocorra. Em, além das inevitáveis conseqüências, sempre restam aprendizados positivos.

Entre as conseqüências inevitáveis, a mais visível deverá ser a redução, temporária e gradualmente recuperável, do crescimento econômico global e o lamentável retraimento do processo de inclusão das bases das pirâmides sócio-econômicas. Por um bom tempo, o capital acionário das empresas deverá manter-se bem abaixo dos valores alcançados no final de 2007. Os balanços internacionais de pagamentos estarão abalados em seus fundamentos estruturais. As fugas para a qualidade (fight to quality) nos mercados financeiros não retroagirão tão rapidamente quanto ocorreram. A liquidez permanecerá baixa, mas não radicalmente destruída por comportamentos massivos e furiosos. Capitais repatriados não retornarão tão facilmente quanto saíram dos países hospedeiros. O ano de 2009 será menos próspero, por mais que as mensagens natalinas e de ano novo reprisem os tradicionais votos de prosperidade. Mesmo assim, espera-se por crescimento, ainda que discreto.

Qual o número do crescimento? Não importa tanto. O que mais conta a esta altura é que o big global crash (quebradeira sistêmica, de amplitude global) foi evitado, não obstante estarmos sob os desconfortáveis impactos de big crunch (grande contração). Enfim, recessão sim, significando redução do crescimento; mas depressão profunda não, o que significaria variações negativas acentuadas do Produto Mundial Bruto. Para o Brasil, as expectativas são de menor crescimento, com níveis ampliados de incertezas. Algo como 2,5% de variação positiva do PIB, mais ou menos 1,5%. Nada muito distante da nova (e, espera-se, transitória) realidade econômica mundial.

José Paschoal Rossetti é professor e pesquisador da Fundação Dom Cabral. Autor, entre outros livros, do clássico Introdução à economia (São Paulo,Editoras Atlas, 21 edições).

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